3.6.08

Sobre a actividade de pensar

Infelizmente, não há nada de mais difícil em literatura do que descrever um homem a pensar. Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas: “pensando ininterruptamente nelas”. E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas, vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco, apenas com a diferenças de que não fazemos tantas tentativas ao acaso, mas sabemos já, por experiência, mais ou menos como fazer as coisas. E se uma cabeça inteligente, como é óbvio, revela muito mais habilidade e experiência nas voltas que dá do que uma cabeça estúpida, o momento em que consegue passar não é para ela menos surpreendente; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor. A essa sensação desconcertante chamamos nós hoje em dia intuição, depois de, antes, outros lhe terem chamado inspiração, e julgamos ver nisso algo de suprapessoal; mas trata-se antes de qualquer coisa impessoal, concretamente da afinidade e da coerência das próprias coisas que se encontram na nossa cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se dá por ela. É por isso que o pensamento, enquanto estiver em movimento, é um estado deplorável, semelhante a uma cólica de todas as circunvalações do cérebro; e quando chega ao fim já não tem a forma do processo do pensamento tal como o experienciamos, mas a da coisa já pensada, que, infelizmente, é uma forma impessoal, porque então o pensamento se volta para fora e está preparado para comunicar com o mundo. Quando uma pessoa pensa, torna-se por assim dizer impossível de captar o momento entre o pessoal e o impessoal, e é certamente por isso que o pensar é um embaraço tão grande para os escritores que eles preferem evitá-lo.


Chamou-me à atenção este breve trecho d'O homem sem qualidades de Robert Musil, recentemente re-traduzido em português. Não raras vezes encontramos na boa literatura as palavras claras que não conseguimos achar nos textos científicos. Às vezes uma frase ou uma simples ideia no meio de um parágrafo, qualquer coisa que pode até nem ser muito sistematizada e conter imensas imprecisões, mas que surgiu ali e que nos dá uma pequena compreensão da vida, das pessoas ou das teorias. É tão difícil descrever um homem a pensar, é tão difícil perceber o que é um pensamento à procura de um pensador ou um pensador à procura de um pensamento... digam coisas!

1 comentário:

Anónimo disse...

Incrível como algumas pessoas conseguem colocar em palavras a complexidade de uma natureza, de um trecho de realidade. É de uma enorme grandeza e de um enorme prazer esta leitura.