31.12.07

Ano novo, " vida velha"

Já lá vai o tempo em que eu achava piada à expressão " ano novo, vida nova".
Está bem, eu sei - é importante e bom fazer balanços, parar para pensar, estabelecer objectivos e acreditar ingenuamente que são para cumprir à risca, pedir desejos ao sabor de passas e imaginar que nesta noite tudo se promete.
Mas daí a desejar prescindir da minha "vida velha" de imperfeição e de lapso, de encontros improváveis e outros que nunca chegaram a acontecer, "vida velha" de palavras tantas vezes não ditas, de nostalgias, esperanças, conquistas, moínhos de vento, momentos de pragmatismo e outros dignos de "cavaleiro da triste figura" ( que bonita esta expressão de Cervantes!), " vida velha" onde me reconheço, e aos meus amigos, às coisas que bem ou mal se foram construíndo e que decidi habitar, utilizando esta coisa boa que é a liberdade, daí a desejar prescindir dela, dizia, vai um caminho que não desejo percorrer.
A "vida velha" é "velhinha" na ternura e "nova" no desejo, é aquela que tenho e que agradeço, "porque me hay dado tanto...".
Por isso, os meus votos para 2008 são assim- vira o disco, e toca quase o mesmo ( porque mesmo na repetição se cria o diferente...):

Continuar a dizer em vez de calar. Exercer sempre novas liberdades. Ensaiar os voos possíveis, questionar a realidade e, acima de tudo , questionar-me. Ser uma zona livre, como diz Prévert.
Poder dizer ao comandante que ele também se engana.


" Zona Livre

Pus o bivaque na gaiola
e saí de pássaro na cabeça.
Então?
já não se faz a continência?
perguntou o comandante.
Não
já não se faz a continência
respondeu o pássaro
Ah bom
desculpe, pensei que se fazia
disse o comandante
Está desculpado, qualquer um pode enganar-se
respondeu o pássaro."


( Jaques Prèvert)

Um novo ano. Outra e a mesma história.

Porque é momento de recomeços, saúdo-vos.

Porque é tempo de promessas, compromissos, desejos cheios e fortunas, proponho a leitura de uma pequena parte de um livro escrito pelo Dr. Óscar F. Gonçalves.
O autor inicia o seu livro resgatando D. Quixote, heróico cavaleiro, esquecido por tantos mas, por outros mais, figura de referência, para nos falar de narrativas, de histórias de vida, de contos, de autores e construções.

Apresento o texto por uma razão vasta. Pelas palavras que usamos e gastamos, pelo silêncio caro que por vezes procuramos ou perdemos, pela autoria desejada e conquistada da nossa própria história de vida (perdida a história dos nossos, num resgate que se impõe), por D. Quixote e pelo sorriso que me desperta, por todos os motivos que me lembrei e não escrevi e por todos aqueles encontrados pelo leitor, os quais gostaria de conhecer.

Com os votos de um ano novo cheio de descobertas, curiosidades, trabalhos e conquistas.
Boa Leitura.


"Ao apresentar ao leitor a imortalizada figura de D. Quixote, Miguel Cervantes recorda-nos que tudo começou no esforço de preenchimento dessas longas tardes em que a personagem se debatia sobre o que fazer com o desmedido espaço e tempo que se lhe afiguravam.
"À semelhança de qualquer narrativa, a vida não passa afinal de um modo complexo de gestão de espaço e tempo. Diante da folha em branco, o autor desenha as personagens que, por sua vez, vão garatujando os seus próprios caminhos na diversidade de cenários e no cruzamento de temporalidades. Tal como D. Quixote, o autor toma a indefinição criativa do espaço e a flexibilidade dos movimentos do tempo como condição necessária para o despertar da sua autoria.
"No entanto, nas primeiras linhas da sua construção, D. Quixote está ainda aquém do processo de autoria, num limbo criativo, na gestação questionante do seu ócio. D. Quixote ocupa o tempo vivendo vicariamente as experiências de outras personagens, deleitando-se numa leitura compulsiva das obras de cavalaria. Com estas leituras, lembra-nos Cervantes, vai-se progressivamente afastando do mundo, chegando ao ponto de se esquecer da administração da sua própria fazenda, bem como de todos os seus bens terrenos. Era, na opinião do autor, uma alienação que o insanescia e que de tanto ler "lhe foi secando o cérebro". No entanto, é no contexto deste insanescimento que decorre o motivo de uma nova procura. Procura testemunhada pelo momento em que D. Quixote decide passar da condição de leitor à condição de autor da sua vida. O espaço e o tempo deixam de ser objecto de uma contemplação ociosa para adquirirem a condição de experiência activa. D. Quixote decide fazer de si próprio "caballero andante, e irse por todo el mundo com sus armas e caballo a buscar las aventuras"."

Viver narrativamente. A psicoterapia como adjectivação da experiência. Óscar F. Gonçalves