29.11.06

Errata

Evidentemente, a citação que surge no meu post anterior como se fosse de Agostinho da Silva pertence a Santo Agostinho. O cansaço não justifica tão crasso lapso, mas aliado à escrita desgarrada de quem acaba de chegar de mais um belíssimo seminário, talvez possa merecer ser desculpado.

Por mjoaoregala

28.11.06

As Palavras

Ao contrário do que tantas vezes acontece na comunicação humana, volto sempre dos seminários do Professor Amaral Dias com a mente mais insaturada. Mais disponível, com mais dúvidas. Portanto, mais capaz de crescer.

De todas as questões abordadas, esta foi a que me ficou mais presente, porque sempre fez sentido na clínica, e dentro de mim: a da palavra como "morte" do objecto. A palavra representação da coisa, atribuição de um nome, linguagem que inaugura a autonomia.

Porque " Aonde a palavra não funda, o sujeito não se funda", como diz Amaral Dias. E acrescenta, citando Agostinho da Silva: " As palavras que são apenas as palavras são o som e o ruído das palavras."

Poder nomear. Poder conceber o outro como ser diferente. Poder "imaginar que faço", como no livro de tão deliciosos diálogos. Ter a capacidade de saír da tirania da pele. Não ser só pele. Ser gente que pode pensar e dizer, apesar de as palavras serem também a nomeação de uma distância.

E saber, para além disto, que as palavras são opacas; não estão só nos livros técnicos da estante ( " Sou freudiana? Sou Kleiniana? Sou Bioniana?" Sou a Maria João e li a Adriana?); têm que, como os modelos, coabitar em nós, ser escutadas, usadas,dar nome às coisas que existem à nossa volta, e sobretudo dentro de nós.

E como (ainda em Amaral Dias) " Um psicoterapeuta que só saiba de psicoterapia nem de psicoterapia sabe", e como ontem foi um dia de dizer a palavra adeus, sem querer caír no cliché de deificar os mortos mas por ter sempre gostado tanto do Mário Cesariny em vida, esse que também subvertia em nome do símbolo, às vezes quase colado ao corpo, aqui fica uma porta de entrada para Elsinore:



You are welcome to Elsinore



Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palvras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício.



Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição.



Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsinore

e há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmo só amor só solidão desfeita



Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.



( Mário Cesariny)

Por mjoaoregala

27.11.06

Os modelos

Desta feita, o Seminário do Prof. Amaral Dias, realizado este fim-de-semana em Estremoz, foi um ir entremeando teoria com a apresentação e discussão de casos clínicos. Não houve a tradicional divisão entre teoria de manhã e clínica à tarde. Julgo não ter sido por acaso ou, pelo menos, surge-me daí uma reflexão que percorre o fio associativo do que foi sendo dito. E também, se bem se lembram, na formação sobre Bion, organizada pelas Oficinas, esta foi uma questão premente.

Para que servem afinal os modelos teóricos? Qual é o seu lugar na prática clínica? Qual é o uso que deles fazemos? Usamos apenas um ou percorremos vários?

Teoria e clínica não se despegam, é certo. Mas como é que fazemos esta passagem bidireccional? E onde é que nos situamos? Sou freudiano? Sou kleiniano? Sou bioniano? O Prof. responde a isto de uma forma desassombradamente simples, que é "Eu sou o Amaral Dias e li Bion". Que quer isto dizer? Noutro momento, prossegue "Vamos sendo povoados de modelos conceptuais à medida que vamos escutando" Quer dizer que do ouvir ao escutar falam também os modelos dentro de nós, mas mais importante ainda é que não falam antes, falam à medida que o paciente fala. Porque no início tudo é "expectativa vazia"...

A este propósito não posso deixar de chamar aqui esse extraordinário pensador que é Muniz de Rezende.

"Ao falar sobre os modelos, Bion nos diz que eles "servem", mas podem ser dispensados depois do uso. São úteis, contanto que não nos prendamos a eles. Por isso dizemos que a psicanálise é pós-paradigmática: ela vem depois de todos os modelos, usados e abandonados. O não-abandono do modelo opera uma redução epistemológica que não permite a passagem do conhecimento para um outro tipo de ciência." (in "A Questão da Verdade na Investigação Psicanalítica", p. 19)

Usar sim, não um mas vários e só enquanto for para expandir o pensamento, é a lição que me fica.

Por Adriana Curado

22.11.06

Mentira

Para quem, como eu, não teve oportunidade de participar no Seminário sobre O Homem e a a Mentira, organizado pelo Instituto de Psicanálise do Porto, talvez seja interessante ler a entrevista com o Dr. Rui Coelho, Psiquiatra e Psicanalista, membro da organizaçãodo seminário, que saíu na Pública de Domingo.

Peca por sucinta, e evidentemente não aborda aspectos clínicos propriamente ditos, mas é interessante e fácil de encontrar. É engraçado confrontá-la com a de Francesco Alberoni, que saíu na edição da semana passada.

Este último considera que, havendo traição numa relação,ela não deve ser revelada, sob pena de nada trazer de construtivo.

Rui Coelho, por sua vez, defende que " Pode ser cruel, humilhante, mas deve dizer-se sempre a verdade.(...) Não há mentiras legítimas, as mentiras piedosas são um sofisma."

É uma questão que dá pano para mangas.Lembro-me do Professor Amaral Dias dizer que a verdade é importante, desde que contribua para o crescimento da relação.

E nós, o que poderemos acrescentar? Parece-me interessante que pensemos juntos sobre o assunto.

Por mjoaoregala

20.11.06

Curtas 2

Ainda no Público de hoje , página 21: a APSI ( Associação para a Promoção da Segurança Infantil) pretende criar uma plataforma de trabalho de onde possa nascer um plano de acção nacional para a segurança infantil. Este plano estará pronto no próximo ano, e será pensado e aplicado em coordenção com a Aliança Europeia de Segurança Infantil. "Destina-se a harmonizar e integrar políticas de combate e prevenção de acidentes, traumatismos e lesões entre os menores de idade. Na UE, os acidentes são responsáveis, anualmente, pela morte de 20 000 crianças com menos de 15 anos."

Pouco se sabe ainda acerca deste plano, já que o encontro das associações e organismos que farão o seu "desenho" começa amanhã.

Contudo, achei importante o lembrete.

Tudo o que inclui a palavra prevenção indicia importantes mudanças.

Curtas 1

No Público de hoje, página 11, "Governo anuncia mais técnicos para acompanhar crianças em risco". Vieira da Silva vem anunciar o lançamento de um programa que permita que especialistas de várias áreas possam colaborar com as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco. Pretende-se alargar e consolidar as redes de intervenção, tornando mais céleres os processos de emergência e permitindo a redução do número de crianças institucionalizadas.

Esperando que esta manifestação de intenções ganhe corpo e se consubstancie em acção e, sobretudo, que seja pensada de forma a simplificar os processos burocráticos, consolidar as políticas sociais, chegar a consensos alargados quanto às formas de intervenção, apurar os processos de sinalização de crianças em risco e investir em acompanhamento especilizado, multidisciplinar e com claros objectivos terapêuticos, estarei atenta a este processo, que julgo interessar a todos os que participam nesta tertúlia, que se pretende espaço de mudança.

Por mjoaoregala

15.11.06

O Livro Verde

Tal como há os livros branco ou amarelo para isto e para aquilo, há também o Livro Verde para a saúde mental. O maior mérito desta iniciativa, dizem os senhores da União Europeia, está na criação de uma plataforma de intercâmbio e cooperação que ajude a definir a estratégia comunitária para a saúde mental e depois a sua execução nos diferentes Estados-Membros.

Logo no primeiro parágrafo da "Introdução" dizem-nos o seguinte: "A saúde mental da população europeia é um dos factores na consecução de alguns dos objectivos estratégicos comunitários, nomeadamente, os de reconduzir a Europa à rota da prosperidade a longo prazo (...)" Fico-me por aqui. Prosperidade? Não será com certeza por acaso que o livrinho é verde e não cor-de-rosa. Com certeza que não...

Mais adiante, na "Situação Actual" percebemos perfeitamente porque se fala em prosperidade. Aqui deixo estes números que são de nos deixar verdes!

- 27 % dos adultos europeus sofrem de algum tipo de doença mental

- em 2020, estima-se que a depressão seja a primeira causa de morbilidade nos países desenvolvidos

- suicidam-se na UE 58.000 pessoas por ano

- a doença mental custa à UE cerca de 3 a 4% do PIB, sobretudo em perdas de produtividade

- as doenças mentais são uma das principais causas de reforma antecipada e de pensões por invalidez

E quanto à nossa política de saúde mental (para atender à exortação do meu último post), há-de chegar o dia em que a Europa nos manda fazer qualquer coisa, mais não seja em nome da prosperidade.


Por Adriana Curado

14.11.06

Algumas perplexidades

1. Outras Oficinas

No Público de Sábado, p 24, foi publicado um artigo sobre alegadas agressões do Padre Alberto Tavares, interno das Oficinas de S. José (no Porto), a um antigo aluno. Supostamente, o capelão residente, ex-director das Oficinas, teria exercido também violência psicológica de forma continuada sobre os alunos: " A botar sempre para baixo, sempre a dizer que somos escumalha, porcaria, pessoas sem carácter, animais..."

Se corresponderem à realidade, este tipo de comportamentos são exactamente o oposto do que é esperado dos técnicos que trabalham com menores social e psiquicamente vulneráveis. São comportamentos que agravam os sentimentos de menosvalia e desamparo; que lançam uma pano negro sobre o futuro; que reforçam fenómenos patológicos como a identificação ao agressor, o comportamento em "acting out", a oposição no lugar do diálogo, do respeito mútuo, da possibilidade contenção terapêutica, da construção de vínculos capazes de nutrir.

A juntar à suspeita, o vice director da instituição vem a público alegar que é " 'normal' que alguém que dirige uma instituição ao longo de trinta anos tenha atitudes enraizadas".

E o actual director não desmente ter pedido desculpas ao ex-aluno, deixando como muito provável a veracidade das suas acusações.

Dito isto, resta-me tentar perceber por que razão o capelão permanece como residente da instituição. Quais as funções que o vinculam à mesma? Januário Carvalho diz que se resumem às de capelão. Ora, a questão complica-se: um capelão, afastado das funções de director, acusado de agressão física e psicológica aos rapazes residentes, sem outras funções técnicas que justifiquem, de alguma maneira, a sua intervenção na equipa técnica, em conflito aberto (agora público) com pelo menos um "aluno"...deverá viver numa instituição para jovens em isco? A que título? Com que benefícios? Com que propriedade?

As crianças e jovens em risco não são propriedade de quem as acolhe. A responsabilidade pelo seu acolhimento, protecção e desenvolvimento é de todos nós. Como a sinto como também minha, deixo aqui estas perguntas. Para que me respondam, se souberem.



2. Depressão

Ontem, no programa Prós e Contras, o Dr. Francisco George referiu os números de pedidos de ajuda nos serviços de saúde pública que correspondem a casos de depressão. São da ordem dos 20%.

Disse ainda- e espero conseguir reproduzir de forma exacta, já que não gravei o programa e me limitei a reter algumas informações importantes- que a depressão é algo ainda muito desconhecido, com uma etiologia complexa, sobre a qual ainda não se sabe muito.

Imaginei como seria bom que Amaral Dias ou Coimbra de Matos tivessem também sido convidados, para que se pudesse falar da depressão com quem conhece os seus meandros, as suas nuances, a sua íntima indexação à pessoa que a sofre.

Francisco George diz ainda que qualquer médico de saúde está habilitado para receber um caso destes. Acredito que sim. Para receber, diagnosticar, até medicar convenientemente, se necessário. Mas depois? Quem faz o acompanhamento psicoterapêutico destas situações? o seguimento psiquiátrico, a psicoterapia individual, o psicodrama, a psicanálise ( viveremos certamente uma época diferente, quando a inserirmos nos serviços públicos...), a terapia familiar? Onde estão os técnicos de saúde mental nos seviços públicos? Existirão algum dia na ordem dos 20%?

Esta história faz-me lembrar vagamente a questão das habilitações para a docência. Para quê permitir aos psicólogos leccionar psicologia, quando os filósofos que o fazem, há tantos anos inseridos no sistema, são até capazes de dar conta do recado?

Sejamos sérios.

Por mjoaoregala

13.11.06

A Saúde Mental em Portugal: em que Estado?

O relatório do Conselho Nacional de Saúde Mental (2002) não deixa margem para dúvidas: as actuais estruturas públicas de saúde mental são insuficientes e desadequadas, não só pela terrível carência de especialistas, mas também pela falta de “sensibilidade” e “motivação” dos chefes de serviço, que por sua vez encabeçam um ministério e uma política global onde a saúde mental não tem lugar e onde as boas intenções ficam, na maior parte das vezes, no papel, inexequíveis. Os chamados indicadores de saúde olham muito para a taxa de mortalidade, mas como na saúde mental a “morte” é outra… lá ficamos nós… os últimos da Europa…

O referido relatório incide também sobre outro aspecto: a tão importante organização dos serviços! A história reza o seguinte: achou-se a certa altura (lá nos findos anos 80 e inícios de 90) que o melhor era seguir o chamado “modelo comunitário”, muito generoso nos objectivos, é certo. Criar-se-iam estruturas de proximidade para se esvaziar o grosso dos grandes hospitais psiquiátricos e tudo contribuiria para diminuir o “estigma” e ajudar à reinserção dos doentes mentais. O ideário do modelo contava também com uma harmoniosa articulação entre os diversos serviços, incluindo as unidades de cuidados primários. O que é que aconteceu? Extinguiram-se os serviços descentralizados e autónomos existentes (20 Centros de Saúde Mental para adultos e 3 Centros de Saúde Mental Infantil e Juvenil), cujas funções foram integradas nos Departamentos de Psiquiatria e Saúde Mental dos hospitais gerais e pediátricos, respectivamente. Contudo, é mais do que sabido que grande parte desses departamentos carece de equipas multidisciplinares, centrando-se numa “progressiva medicalização das intervenções”, sem atender à multiplicidade e complexidade da doença mental. Sobretudo em situações clínicas graves, a experiência mostra-nos a necessidade de prestar cuidados continuados numa rede de serviços diversificados. O actual SNS revela o quão longe estamos dessa realidade! Basta olhar com atenção para os números da Rede de Referenciação, publicada em 2004 pela Direcção Geral da Saúde. Só a título de exemplo, vemos que nos 10 hospitais da Região Centro (incluindo 3 hospitais psiquiátricos), que têm resposta ao nível da saúde mental, existem nos quadros apenas 21 psicólogos. Ao nível da saúde mental infantil e juvenil, o cenário é ainda mais arrasador, considerando o Conselho Nacional de Saúde Mental ter havido um “retrocesso de décadas”. Actualmente apenas existem equipas multidisciplinares em 3 departamentos e os especialistas (pedopsiquiatras) estão quase exclusivamente concentrados em Lisboa, Porto e Coimbra.

Quer isto dizer que a prometida proximidade e continuidade dos serviços de saúde mental, assim como a efectiva coordenação com outros serviços (Centros de Saúde) e instituições da comunidade (escolas, IPSS, etc) é claramente insuficiente e ineficiente. Mais do que a falta de especialistas, é a falta de interesse do poder político que dita o pobre Estado da saúde mental em Portugal. Nada de novo, portanto! Se o critério economicista é o critério por excelência, então que se façam as contas de quanto custa ao País este desinvestimento sistemático na Saúde Mental!

Por Adriana Curado

12.11.06

Oficina On Line


Este lugar nasceu para nos encontrarmos. Dizemos que é uma Oficina. Um " lugar onde se operam grandes transformações". Pretende ser um espaço onde se pensa a saúde mental, com todas as perplexidades, dúvidas, inquietações, intuições e possíveis caminhos que isto nos possa sugerir.


Será um lugar de trocas. Se participarmos, aprenderemos certamente uns com os outros, e com os "terceiros" que nascem do encontro, já que 1+1 pode ser, felizmente, igual a 3.


Deriva de uma tertúlia com o mesmo nome, que acontece em Aveiro com alguma frequência, e, episodicamente, noutros lugares, nascida da vontade que alguns profissionais de saúde mental e áreas vizinhas sentiram de comunicar uns com os outros sobre as questões que os preocupavam, ou sobre as quais achavam importante dizer alguma coisa, inventar a mudança, agir.


Será aquilo que dele fizermos. Com a responsabilidade e o prazer que isso implica.