28.11.06

As Palavras

Ao contrário do que tantas vezes acontece na comunicação humana, volto sempre dos seminários do Professor Amaral Dias com a mente mais insaturada. Mais disponível, com mais dúvidas. Portanto, mais capaz de crescer.

De todas as questões abordadas, esta foi a que me ficou mais presente, porque sempre fez sentido na clínica, e dentro de mim: a da palavra como "morte" do objecto. A palavra representação da coisa, atribuição de um nome, linguagem que inaugura a autonomia.

Porque " Aonde a palavra não funda, o sujeito não se funda", como diz Amaral Dias. E acrescenta, citando Agostinho da Silva: " As palavras que são apenas as palavras são o som e o ruído das palavras."

Poder nomear. Poder conceber o outro como ser diferente. Poder "imaginar que faço", como no livro de tão deliciosos diálogos. Ter a capacidade de saír da tirania da pele. Não ser só pele. Ser gente que pode pensar e dizer, apesar de as palavras serem também a nomeação de uma distância.

E saber, para além disto, que as palavras são opacas; não estão só nos livros técnicos da estante ( " Sou freudiana? Sou Kleiniana? Sou Bioniana?" Sou a Maria João e li a Adriana?); têm que, como os modelos, coabitar em nós, ser escutadas, usadas,dar nome às coisas que existem à nossa volta, e sobretudo dentro de nós.

E como (ainda em Amaral Dias) " Um psicoterapeuta que só saiba de psicoterapia nem de psicoterapia sabe", e como ontem foi um dia de dizer a palavra adeus, sem querer caír no cliché de deificar os mortos mas por ter sempre gostado tanto do Mário Cesariny em vida, esse que também subvertia em nome do símbolo, às vezes quase colado ao corpo, aqui fica uma porta de entrada para Elsinore:



You are welcome to Elsinore



Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palvras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício.



Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição.



Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsinore

e há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmo só amor só solidão desfeita



Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.



( Mário Cesariny)

Por mjoaoregala

Sem comentários: